Do "Mineirinho, Vivo ou Morto" ao "Mineirinho, Leve e Solto", por Franklin Jr

Do "Mineirinho, Vivo ou Morto" ao "Mineirinho, Leve e Solto", por Franklin Jr FRANKLIN JR Muito embora tenhamos consciência das agonizantes assimetrias sociais que demarcam a realidade brasileira, é motivo de perplexidade não somente a astúcia, o ardil e a profusão de delinquências perpetradas pelo “Mineirinho” mais conhecido da atualidade, assim como a intrigante blindagem judicial que parece ratificar a intocabilidade deste homem cínico, que foi um dos principais artífices da conspirata golpista que está arruinando o Brasil. ​ O abismo no qual o país foi lançado pelo golpe de 2016 e pelos atos ilegais e estelionatários dele derivados, se inscreve de maneira geral na vida nacional como ruína econômica, política, social, cultural, moral e também judicial, tendo em vista o excepcionalismo punitivista que, sob as réguas de um penalismo medieval seletivo e do espetáculo midiático, chicoteia com uma mão cruel os despossuídos e também aqueles que os defendem [1], e com a outra mão adula docemente os poderosos. Mas o destino do “Mineirinho” de agora contrasta abissalmente com a sina de um outro famoso Mineirinho, aquele dos anos 50 e 60 do século passado, que ficou conhecido nas periferias do Rio de Janeiro (principalmente no Morro da Mangueira, onde morava) e, posteriormente, em todo o país, como o “Robin Hood Carioca”. Considerado um dos últimos “bandidos românticos” e apelidado de Mineirinho pela imprensa carioca, à época, por ser oriundo de Minas Gerais, nascido na antiga cidade de Rio Pomba [2], na Zona da Mata mineira, José Miranda Rosa, chamado pelos mais próximos apenas de Zézé, era movido por paixão intensa e acabou se enredando no mundo do crime, sendo atribuído a ele, inclusive, vários ilícitos dos quais provavelmente nem teve participação. Ao comentar sobre a bandidagem dos anos 60, a reconhecida artista plástica e escultora Lygia Clark [3] diz ter conhecido o Mineirinho: "Na nossa época, o máximo que tinha era um pouco de maconha, de cheirinho-da-loló. Conheci o Mineirinho, a mulher dele, Maria Helena, e o Cara de Cavalo. Eram bandidos românticos. Poderiam até atirar num policial, o que significava que estariam jurados de morte. Mas você podia frequentar o morro inteiro”. Alvo de uma caçada policial, o Mineirinho teve uma morte brutal, sendo alvejado com 13 tiros de metralhadora, em maio de 1962. Seu falecimento chocou especialmente aos moradores do Morro da Mangueira, no Rio, e milhares de pessoas compareceram ao seu enterro. Quem também se comoveu com a sua trágica morte foi a escritora Clarice Lispector, que sobre ele escreveu um conto existencial e sensivelmente humano, “Mineirinho” [4], publicado em seu livro “Para Não Esquecer”. Um conto, por sinal, atualíssimo, no qual questiona a atuação da justiça, a violência do Estado e expressa uma sensibilidade aguda em defesa dos direitos humanos. Alguns trechos: “Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porquê eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro. (...) Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma. Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila, e que os outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender. Porque quem entende desorganiza. (...) nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem.” A saga de José Miranda Rosa ainda virou cinebiografia com o famoso filme de Aurélio Teixeira, "Mineirinho, Vivo ou Morto", de 1967, no qual é interpretado por Jece Valadão e sua namorada por Leila Diniz. O filme completo está disponível neste link: https://www.youtube.com/watch?v=zovzuXPCWKo&index=7&list=PL9v6jijE7VQKAZrdldGbGWtKAXnNtxw4e. Curiosamente, num paralelismo histórico paradoxal, da mesma cidade de onde saiu o Mineirinho, que se tornou um bandido conhecido nacionalmente, também ascendeu um dos grandes juristas do país à época, Nelson Hungria Hoffbauer [5], conhecido como o “Príncipe do Penalismo Brasileiro”. Quando era Promotor de Justiça em Rio Pomba-MG, onde se casou e teve filhos, Nelson Hungria (que era natural de Além Paraíba), havia decidido entrar para a política, candidatando-se a vereador municipal. Talvez por sorte do destino, Hoffbauer perdeu a eleição em Rio Pomba por apenas 1 voto, certamente demovendo-o da aventura fracassada e redirecionando inteiramente a sua inteligência para os desafios da carreira jurídica. Hungria, assim, tornou-se professor de Direito Penal da então Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, atual Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tendo papel ímpar na elaboração do Código Penal Brasileiro, e culminou como Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), nomeado em 1951 por Getúlio Vargas. Um dos pensamentos de Nelson Hungria [6], inscritos na forma de comentário ao Código Penal, brilha como uma luz no fim do túnel do atual obscurantismo judicial “conviccionista” que se abate sobre alguns: “A fonte única do direito penal é a norma legal. Não há direito penal vagando fora da lei escrita”. Os contrastes existentes entre as trajetórias circunstanciadas dos “mineirinhos” (o “Hood Robin” rico de agora e o “Robin Hood” pobre de outrora), metaforizam as assimetrias históricas abismais que até hoje emperram os nossos melhores anseios civilizatórios e nos instigam a encontrar a energia criadora e a força social capazes de superá-las, sem confundir ódio com memória, nem meritocracia com imperativos civilizatórios e nem justiça com vingança [7, 8 e 9]. [1] Ver o artigo de Mauro Donato, “A discrepância de tratamento entre ricos e pobres na justiça que gerou o descalabro de hoje” (disponível em: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-discrepancia-de-tratamento-entre-ricos-e-pobres-na-justica-gerou-o-descalabro-de-hoje-por-mauro-donato/) e o texto de Altamiro Borges, "A caçada a Lula para completar o golpe" (disponível em: https://www.brasil247.com/pt/colunistas/altamiroborges/255338/A-ca%C3%A7ada-a-Lula-para-completar-o-golpe.htm). [2] Fundada em 1767, então com a denominação de “Freguesia do Mártir São Manuel do Rio da Pomba e Peixe dos Índios Coroados e Cropós”, a Cidade mineira de Rio Pomba completa 250 Anos de Fundação, em 25 de dezembro deste ano. Município pioneiro da Zona da Mata Mineira, de muitas e inusitadas narrativas, dispõe de um Museu Histórico (http://www.riopomba.mg.gov.br/mhrp/) com acervo de referência estadual. [3] Artigo “Outros bandidos famosos”. Disponível em: http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/outros-bandidos-famosos. [4] O Conto “Mineirinho” de Clarice Lispector. Disponível em: http://www.ip.usp.br/portal/index.php?option=com_content&id=4396:conto-qmineirinhoq-clarice-lispector&Itemid=220&lang=pt. [5] Biografia do Ministro Nelson Hungria Hoffbauer do STF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=133. [6] Artigo “Metáforas e Pensamentos de Nelson Hungria”. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/colunistas/rene-ariel-dotti/metaforas-e-pensamentos-de-nelson-hungria-4qizrdho0cunjbdtcxe1qfzek. [7] como disse o escritor mineiro, Pedro Nava, “Eu não tenho ódio; eu tenho é memória”. [8] ver texto paradigmático sobre a meritocracia, “Desvendando a espuma: o enigma da classe média brasileira”. Disponível em: http://jornalggn.com.br/fora-pauta/desvendando-a-espuma-o-enigma-da-classe-media-brasileira#.UnJPeyZlTeF.facebook. [9] por “imperativos civilizatórios” entendo os direitos humanos fundamentais; os 4 Incisos do Art. 3º da Constituição Federal de 1988; também aquilo que o Papa Francisco reivindicou, em visita a uma favela em Nairóbi, Kênya, para todos os pobres e humanos do mundo como algo sagrado: “Terra, teto e trabalho”; ou, ainda, o que o professor Ângelo Cavalcante entende por “determinações humano-históricas; são exigências, condições ou pré-requisitos estruturais e fundamentais para que se conforme um indivíduo, que se constitua um povo, um país, valores modernos e altruístas, uma sociabilidade superior, uma civilização e seus horizontes” (disponível em: http://jornalggn.com.br/blog/franklin-jr/o-gracioso-e-perigoso-mundo-dos-seres-apoliticos-por-angelo-cavalcante). jornalggn.com.br

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