Ângela Nascimento: "Ignorar ou minorar as relações raciais é perder a dimensão da força das mulheres negras em suas realidades de extrema violência"

Ângela Nascimento: "Ignorar ou minorar as relações raciais é perder a dimensão da força das mulheres negras em suas realidades de extrema violência"
publicado em 25/11/2010

Por Sulamita Esteliam
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Blog A tal mineira - 22/11/2010

Conheci Ângela Maria de Lima Nascimento no debate de abertura do Encontro Rede Mulher em Comunicação, na Unicap, Recife, final de agosto, promovido pelo Centro de Mulheres do Cabo. Convidada como representante do Observatório Negro, de Pernambuco, do qual é conselheira-adjunta, sua palestra versou sobre o preconceito, racismo e a discriminação a que a mulher negra, mais do que as mulheres no geral, é objetivo na mídia. Nada mais, nada menos, que o rascimo institucional, mal-camuflado, que permeia a cultura brasileira em todos os setores, já a partir da família, e inclusive na escola. Ângela não tem dúvidas de que isso reflete na autoestima de meninas e meninos, e deforma a construção da identidade do povo negro, enquanto “sujeitos pensantes, com história de vida, características físicas e culturais próprias”. E desconsidera seu papel na arquitetura da nação-Brasil. É disto que se trata a entrevista abaixo, que fizemos através do correio eletrônico.

Ângela Nascimento é conselheira Nacional dos Direitos da Mulher, representando a AMB – Articulação de Organizações de Mulheres Negras. Graduada em Serviço Social, possui especialização em Saúde Pública pelo Núcleo de Saúde Coletiva da Fundação Oswaldo Cruz. É mestra em Serviço Social pela UFPE, na área de Políticas de Saúde, com enfoque na assistência à saúde da Mulher Negra

São 24 anos de experiência profissional nas áreas de educação médica, educação popular para mulheres negras, planejamento e gestão de políticas regionais, saúde pública, educação em saúde, pesquisa social e avaliação de programas e projetos sociais para vários organismos públicos como Sudene, FAT – Fundo do Amparo ao Trabalhador, governos estadual e federal e a própria UFPE – Universidade Federal de Pernambuco, onde assessora a Coordenação do curso de Medicina.

A entrevista:

A Tal Mineira: A violência contra a mulher negra e índia é maior do que contra a mulher branca e de outras etnias, por quê?
Ângela Nascimento: É, sem dúvida. Porque, historicamente, a mulher negra e indígena foram incorporadas como objetos de trabalho na dinâmica econômica escravista, negadas como parte da humanidade que iria construir este território. Mesmo que a mulher branca também tenha sido inserida em um contexto patriarcal, de domínio masculino, ela fazia parte do projeto demográfico de expansão territorial. Ela não foi inserida como força de trabalho, como peça produtiva. A violência contra a mulher negra e indígena foi ideologicamente construída na negação do sujeito negro e indígena dentro do projeto civilizatório, e tem como agregadores o sexismo e a dominação de classe.

O racismo e o preconceito afetam a vida das mulheres negras até no atendimento no sistema de saúde. O que pode ser feito para mudar isso?
Primeiro, reconhecer o racismo institucional como dimensão presente nas instituições sociais, nas práticas cotidianas dos servidores públicos em todos os níveis de escolaridade. Atuam nas formas de triar o acesso às pessoas aos serviços, ao atendimento com respeito e qualidade. Atuam na reprodução do desdém, do desqualificar o tempo do outro, em sua maioria mulher negra.

Segundo, promover formação para tais profissionais, incorporando novos conteúdos programáticos aos currículos escolares, nas graduações e nas pós-graduações. Assistência à saúde implica em escuta ao outro, antes de diagnósticos. Se esse outro não me interessa enquanto projeto ou ação profissional, gera-se desrespeito e, consequentemente, descaso. Na saúde, descaso vira morte, e é isso o que vemos todos os dias.

O desenvolvimento da auto estima das meninas negras, já na escola, pode alterar o rumo desta história?
Sem dúvida. As escolas podem fazer um grande diferencial em promover formas de fortalecimento da identidade das meninas e meninos negros. Valorizar a fala, a história de vida, as características físicas e culturais é um ponto crucial.

Você, que integra Observatório Negro, diria que o tratamento dado à mulher negra pela mídia estimula o desrespeito e a violência?
Sou conselheira-Adjunta do Observatório Negro. A Comunicação é uma das áreas de atuação nossa, compreendendo que o direito humano de comunicação ao negro, sobretudo às mulheres negras, ainda é objeto de luta para o enfrentamento ao racismo e sexismo. O tratamento dado à mulher negra nos meios de comunicação ainda é, predominantemente, racista, ao abordá-la ora como objeto de sensualidade, ora como empregada doméstica e nos negando imagens qualificadoras de nós mesmas. Precisamos de práticas de comunicação que nos veja como seres iguais, com os mesmos direitos e que nos coloque na posição de seres pensantes, mulheres líderes, referenciais na ciência, no trabalho, na literatura.

A briga por espaços de poder nos movimentos sociais reproduz a intolerância e a discriminação, também?
Reproduz, na medida em que a ideologia racista não é assumida como uma dimensão estruturante da luta pela igualdade. A igualdade de gênero e a transformação das relações de classe não foram construídas sem o sujeito negro. Ignorar ou minorar as relações raciais, sobretudo na luta dos movimentos sociais no Brasil, é perder a dimensão da força das mulheres negras em suas realidades de extrema violência. Reconhecê-las como sujeitos políticos implica reconhecer novos sujeitos no acesso ao financiamento de projetos e não apenas como objeto de ações políticas de movimentos sociais. Cremos que o diálogo dentro do movimento é o melhor instrumento para superarmos as intolerâncias, mas o diálogo exige trabalho e processo. Nisso nós apostamos.

Você tem um trabalho sobre os efeitos da comunicação a partir da deformação médica, explique o que significa e o que pretende com ele.
Como assistente social, exerço a função de assessora da Coordenação do Curso de Medicina da UFPE, na qual também atuo como colaboradora docente em dois módulos (antigas disciplinas). Nesse contexto, fiz minha pesquisa de mestrado foi sobre a assistência ao pré-natal das mulheres negras usuárias do Hospital das Clínicas da UFPE e identifico junto aos estudantes de medicina uma lacuna absurda na falta de formação sobre as condições de saúde das mulheres negras. Sobre a particularidade da saúde dessas mulheres sob a perspectiva do racismo. Abordo no 4º período do curso, em Fundamentos da Atenção Básica, a realidade dessas mulheres em seus aspectos raciais (como construção social), territorial, e de saúde. Pretendo, ainda que timidamente, pois ainda não sou professora efetiva, contribuir para discutir o mito da democracia racial, em um contexto marcado pelo pensamento de Gilberto Freyre de que em Pernambuco, não há racismo. Demonstro com base nas pesquisas epidemiológicas, o quanto é a mulher negra quem mais more em ambientes públicos, quem mais more de morte materna, quem acessa mais as unidades públicas de saúde.

Que mensagem você transmitiria às mulheres afrodescentes pelo 20 de Novembro, Dia Nacional da Consciência Negra?
Mulheres de Ébano, escutem as suas melhores vozes, amem seus corpos, sua mente, “assumam sua raça, assumam sua cor”. Organize-se, no plano pessoal e coletivo, organize-se, leia, questione, leia, ame, leia, ore, leia, chore e abrigue suas demais irmãs negras. Reuna-se, mesmo em casa. Não dê ouvidos ao racismo que quer nos impedir de sermos nossa própria vida. Afirme nossa história, leia contos, converse com seus filhos, companheiros(as), acompanhe o que a escola diz, acompanhe o que está nos jornais, escreva uma frase, um texto, um livro. Vá às ruas, seja você, sejamos nós as vozes que mudarão este país, tornando-o realmente uma nação a altura do povo negro.
Extraído do site da Fundação Perseu Abramo

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