A SEDUÇAO DO NEOLIBERALISMO

A SEDUÇÃO DO NEOLIBERALISMO
Frei Betto


Nessa sociedade neoliberal que respira a cultura globocolonizadora, de caráter consumista, a verdadeira cultura é substituída pelo entretenimento. Busca-se formar consumidores e não cidadãos. Menos razão e mais emoção. Cultura é tudo aquilo que humaniza o nosso espírito e a nossa consciência. Ora, como o sistema multiplicará os seus lucros se as pessoas tiverem senso crítico e refinamento espiritual?

São Francisco de Assis, hoje, seria o anticonsumista. Sócrates passeava pelas ruas de Atenas para ver quantas coisas o comércio oferecia e que ele não necessitava.

A receita de sucesso do sistema é tornar o supérfluo necessário. Fazer com que o consumidor prefira perder a cabeça do que ver desaparecer das prateleiras o seu xampu preferido... Ninguém liga a TV para ver anúncios. Exceto a TV a cabo, ninguém paga para ver TV. Ela vive dos anunciantes. Mas precisa de programas e telejornais para atrair o telespectador. Tudo bem pensado para distraí-lo, entretê-lo, sem incomodá-lo e, muito menos, levá-lo a perceber que a realidade contém fatos e verdades que o senso comum ignora.

Já pensou a TV exibindo uma série de reportagens sobre a dívida externa brasileira (US$ 231 bilhões) e seus efeitos na economia nacional e na qualidade de vida do nosso povo? Não daria ibope. A menos que fosse um programa muito bem feito, sem a chatice dos chavões da esquerda, que não aprende a lidar com o universo onírico dos telespectadores. Prova disso é que, na hora das campanhas eleitorais, os candidatos majoritários de esquerda contratam publicitários sem nenhuma afinidade política ou ideológica com eles. Daí a contradição entre o conteúdo e a forma da mensagem. Como se só a direita soubesse fazer sonhar. Quando a esquerda - ou o que resta dela - vai aprender algo de estética? Beleza é fundamental, já alertava Vinicius de Moraes.

A força do sistema reside em seu poder de sedução. Ele mexe com a mente e o coração das pessoas. Acena com riqueza fácil, beleza fácil, poder fácil, desde que se adotem os seus valores: acumular, competir, ficar-na-sua, não se envolver com problemas alheios e causas coletivas. Imprima à sua vida o doce embalo dos filmes de Hollywood. Ou você conhece algum vencedor (winner ) sem uma boa dose de egoísmo?

Assim, o sistema desumaniza, dando uma no prego e outra na ferradura. Pois quando a desumanização aparece na forma de violência urbana (por que os pobres ficariam isentos da sedução da riqueza?), então o sistema grita: Basta! Desarmem-se! Ora, como desarmar-se num sistema que induz a desamar? Conhece algum vencedor preocupado com a sorte dos 50 milhões de pobres e dos 21 milhões de miseráveis que existem no Brasil? (Dados IBGE/2000).

O neoliberalismo descobriu o que os alquimistas e cientistas buscavam há séculos: o elixir da eterna juventude. Malhar, submeter-se a cirurgias plásticas, vestir-se e agir como se fosse eternamente jovem. Claro, ninguém está satisfeito com o próprio corpo, exceto os que não prestam muita atenção nele e consideram a velhice bem-vinda. Fora disso, é tratar de encobrir as rugas, esconder a celulite, adotar regimes de fazer inveja a faquir. Sofrer, sofrer muito para ser contemplada como uma nova Vênus ou um novo Apolo. Sofrer no bolso e na auto-estima, na ascese diante de uma suculenta feijoada ou um bolo de chocolate, na perda de horas de leitura e aprimoramento cultural para dedicar-se à esculturação do próprio corpo.

A perenização do presente, como experiência privada, é reflexo da "privatização" filosófica do neoliberalismo, que tem como efeito a glamourização das relações pessoais, criando novos apartheids. São excluídos aqueles que não correspondem aos modelitos do consumismo imperante, como os gordos, os velhos e os feios.

Ficar doente, ter uma deficiência física ou um filho com uma anomalia mental, é caso para esconder debaixo do tapete. Quase todo mundo tem, mas pouca gente sabe. Quase todo mundo tem na família um parente portador de uma lógica singular considerada maluquice, mas a família morre de vergonha, dá um jeito de esconder. Por quê? Porque vivemos numa sociedade em que incorporamos os modelitos do consumismo. Não somos capazes de amar o diferente. Buscamos a semelhança. Ou melhor, reinventar-nos à imagem e semelhança dos atores e atrizes, atletas e apresentadores(as) de TV que servem de paradigmas consumistas.

O que aconteceu em Porto Seguro, em abril, foi algo mais grave do que a imprensa fala. Não nos assumimos como nação brasileira, com as nossas raízes. Uso uma metáfora: tenho um filho deficiente mental, dou uma festa na minha casa e dou um jeito de sumir com esse menino. Porque se ele aparecer na festa quebra o clima. Mas, em plena festa, o menino aparece. Foi isso que ocorreu em Porto Seguro. Os povos indígenas sempre foram considerados, pela nossa cultura segregacionista, como esse menino que tem de ficar lá no mato, porque decidimos que somos descendentes dos europeus.

Basta recordar que o Brasil sempre esteve de costas para a América Latina. Todo o desenvolvimento brasileiro se deu na faixa litorânea. A nossa proximidade com a Europa e, mais recentemente, com os Estados Unidos, é muito maior do que a nossa proximidade com o continente latino-americano. Talvez sejamos o povo que tem menos sentimento de latino-americanidade. Agora, raízes indígenas, nem falar...

Por quê? Porque temos uma enorme dificuldade de nos assumir como povo brasileiro, não fomos educados para isso, não entendemos o significado dos povos indígenas. Eles representam uma reserva antropológica única no planeta. Temo que, assim como hoje crianças brincam com dinossauros, num clima de certa nostalgia, com pena daqueles bichões terem desaparecido, daqui a 200 anos talvez venham a brincar com indiozinhos, e quem sabe um menino dirá para o outro: "O vovô, quando era criança, viu um índio vivo na televisão".

Olhamos o índio a partir do que nós temos e eles não têm. A dificuldade é fazer o exercício contrário. O que eles têm que eu não tenho? Eles não têm apropriação privada de bens, não têm miséria - estou falando de índios aldeados, aqueles que ainda estão tribalizados -, não têm indiferença a quem sofre, não têm marginalização de idosos e crianças. Eles têm um profundo espírito de solidariedade.

O Brasil abriga, hoje, cerca de 350 mil índios, distribuídos entre 215 etnias que dominam 186 diferentes idiomas. E ainda há quem repita que, neste país, só se fala uma língua...

Há pouco estive numa empresa de correio privado que promove seminários internos para elevar o nível de cidadania dos seus funcionários. O vice-presidente da empresa abriu a sessão dizendo: "Olha, precisamos crescer em consciência de cidadania; ontem vi na televisão aquela manifestação em Washington contra o FMI e fiquei pensando: se o brasileiro tivesse o mínimo de consciência de cidadania, nós estaríamos fazendo o mesmo na porta do Tribunal de Contas no Município de São Paulo. Com essas denúncias contra o prefeito... Mas ninguém sequer passa lá com o carro e dá uma buzinada".

Falei para mim: "Poxa, alguma coisa está mudando nesse país, onde uma empresa está preocupada com o crescimento da consciência cidadã". Hoje, muitas empresas admitem que falsos valores, como a competitividade, entram tanto na cabeça dos funcionários, que eles acabam competindo, na mesma empresa, entre si. Aí emperra a coisa. Porque a competição deve ser de empresa a empresa. Mas a idéia de que tenho de competir, tenho de passar por cima do meu colega do trabalho, acaba predominando.

É como o problema da vacina da Aids. Penso que vai demorar a ser descoberta. Por quê? Porque o cientista que descobriu, na França, uma proteína, não fala para o outro que descobriu nos Estados Unidos uma enzima. Todo mundo quer ser o primeiro a chegar no pódio. Até porque se sabe que, quem chegar primeiro, vai lucrar com a vacina, no primeiro ano, US$ 10 bilhões. Se houvesse cooperação, talvez já existisse vacina para Aids.

Infelizmente não há o mesmo empenho para se aplicar a vacina contra a fome, que mata muito mais do que a Aids. A vacina é um prato de comida por dia. Mas como a fome faz distinção de classe, e a Aids não, então temos, em Santa Mônica (EUA), a Fundação Elizabeth Taylor Contra a Aids, mas não a Fundação Elizabeth Taylor Contra a Fome.

Existe um outro problema além da fome e que, como a Aids, não faz distinção de classe: a destruição do meio ambiente. Estamos numa nave espacial chamada Terra que, como os aviões transcontinentais, é dividida em primeira classe, classes executiva e econômica. Mas, na hora que cai, morre todo mundo igual. (Dizem que a Boeing está inventando uma primeira classe ejetável. Você paga US$ 20 mil para dar adeusinho para os demais). Mas, enquanto não se inventa isso, todos somos indistintamente afetados pelas questões do meio ambiente.

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