Carta Capital

Internacional
Mino Carta

A memória preservada

09/10/2009 13:00:58

Mino Carta



Acreditamos que o privilégio deva ser combatido e destruído onde quer que se aninhe, e que os pobres e os desvalidos tenham de ser defendidos e tenham voz e possibilidade concreta de mudar suas condições.” Traduzo mais ou menos livremente uma frase de Enrico Berlinguer, o maior líder comunista europeu do pós-guerra. É perfeita definição do que significa hoje ser de esquerda, em sintonia fina com Norberto Bobbio, pensador não comunista.

Berlinguer morreu há 25 anos, e o aniversário foi celebrado em Roma na Piazza Farnese, à sombra de uma fachada michelangiolesca por alguns milhares de cidadãos empenhados em manter acesa a memória. A partir daquele evento, nasce um livro, recém-publicado pela Edizioni Memori (Autori Vari Ciao Enrico 2009 by Mamoria Scarl, redazione@memori.it www.memori.it) que reú-ne depoimentos de políticos e intelectuais, nem todos de esquerda.

Cito, entre muitos outros, lideranças do atual Partido Democrático, como Dario Franceschini, Pierluigi Bersani e Piero Fassino, ex-democrata-cristãos como Pierferdinando Casini (atual líder da UDC, de oposição ao governo Berlusconi) e Romano Prodi, do atual presidente da Câmara, Gianfranco Fini (do Povo da Liberdade, da maioria situacionista), do diretor de cinema Ettore Scola e de um jornalista exemplar como Eugenio Scalfari.

Livro muito instrutivo, e minhas reflexões a respeito permito-me dedicá-las ao ministro e amigo Tarso Genro, e aos ilustres professores de Direito nativos jejunos em matéria de história contemporânea, a ponto de achar a Itália dos anos 70 entregue a um regime de extrema-direita. Não me refiro ao senador Suplicy e à escritora Fred Vargas por razões humanitárias.

Ciao Enrico coloca na introdução “um agradecimento especial a Claudio Bernabucci, porque sem sua intuição e sua paixão esta obra não teria sido publicada”. Pois é, Claudio, fraterno amigo, que acompanhou no Brasil o atual presidente da República italiana, Giorgio Napolitano, companheiro de Berlinguer, 21 anos atrás, conferencista no Instituto de Estudos Avançados da USP com plateia lotada. “Agrada-me esperar”, escreve Bernabucci em seu depoimento, “que, ao recordar Berlinguer depois de tantos anos desde sua morte, possamos encontrar novos estímulos e mais sérias vontades políticas para derrotar a vergonha de um mundo tão estupidamente desigual.”

O depoimento que propõe à memória uma perspectiva mais funda é, a meu ver, o do jornalista Scalfari, fundador do semanário L’Espresso e do diário La Repubblica. Primeira referência fundamental ele a faz à ruptura entre o PCI de Berlinguer e o PCUS. “Foi então”, sublinha, “que a adesão da Itália à Otan foi defendida como fator de estabilidade democrática, mesmo mantendo as diferenças e as críticas daquela entidade em que se exprimia a política europeia dos EUA. Foi também a fase em que foram tentadas várias e bastante heterodoxas iniciativas por parte do PCI, entre elas o eurocomunismo, o compromisso histórico com o Partido Democrata Cristão, a política de unidade nacional da qual foram artífices Aldo Moro e Enrico Berlinguer.”

Acentua ainda Scalfari, grande amigo do secretário vermelho mas nunca filiado ao partido, a firme posição do PCI contra o terrorismo durante os chamados anos de chumbo, e, por obra de Berlinguer, “a blindagem da classe operária em relação a este gênero de manifestações de violência extrema e irresponsável”. O líder comunista tinha plena consciência do poder do seu partido e do papel determinante que à época lhe cabia. Nas eleições de 1976 o partido atingiu cerca de 35% dos votos enquanto o PDC, majoritário, não passava de 38%. Estava claro que a solução exigia um acordo entre eles, e tal foi o plano do compromisso histórico.

Não é que o PCI desmerecesse o rol proeminente. Sua contribuição ao crescimento econômico da Itália, saída dos escombros da Segunda Guerra Mundial, fora extraordinário. A pressão política e, mais especificamente, sindical, exercida naquela época foi decisiva como o fermento do bolo. Muitos anéis saíram dos dedos mais graúdos. Recordo a entrevista que Giorgio Napolitano, hóspede de São Paulo, me concedeu há 21 anos. Basicamente, foi o que ele me disse: “Sim, o propósito era melhorar o meu país pelo caminho de uma igualdade que não é tão utópica assim”.

Leio Gennaro Migliore, um dos depoentes em Ciao Enrico: “O PCI dos anos 70, aquele de Berlinguer, conheceu uma estação extraordinária. As mais importantes reformas civis da Itália, depois da Constituinte, foram aquelas que ampliavam o sentido da palavra mudança. O Estatuto dos Trabalhadores, a reforma da saúde e da escola, a Lei Basaglia (sobre o tratamento das doenças mentais), as batalhas pelo divórcio e pelo aborto tornaram-se a cédula de identidade do nosso país”.

Escreve Scalfari: “O esforço de Berlinguer para manter unidas as suas gentes na travessia da margem comunista para a democracia apoiou a alavanca sobre o conceito da diversidade moral, e a questão moral transferiu-se justamente para o terreno ético-político do derradeiro combate do PCI”. E o jornalista atira no alvo: a questão vai muito além da corrupção de políticos, empresários, burocratas dos mais diversos calibres. Quem ficou nisso, não lhe percebeu os verdadeiros alcances. “O problema, escreve o jornalista, “assenta-se no uso indevido das instituições, no contraste entre a Constituição escrita e aquela determinada pela tradição da partidocracia.”

A lição, atualíssima na Itália de Berlusconi, soa convincente também para nós, neste exato instante da nossa história política. Diversas as circunstâncias, mas o homem acaba por se parecer em quaisquer latitudes.
Outro aspecto vale ressaltar, e diz respeito ao lamentável caso Battisti, lamentável pelos rumos que tomou neste nosso Trópico de Capricórnio, a partir de visões equivocadas e informações francamente erradas.

Foi exatamente o assassinato de Aldo Moro, em 1978, em meio aos chamados anos de chumbo, tão distintos os da Itália daqueles do Brasil, que impediu o acordo destinado a mudar positivamente a história do país. Fruto de uma conspiração que envolveu serviços secretos de diversas extrações, inocentes úteis e surfistas do oportunismo (como este infinitesimal Battisti), políticos mafiosos, terroristas de esquerda e direita, bucha de canhão.

Tal é a sombra trágica que se alarga sobre a Itália dos anos 70, enquanto Berlinguer e Moro surgem em plena luz. Diga-se que a Justiça italiana, ao contrário do que imaginam os pensadores nativos a favor de Battisti, dá neste momento mais uma prova de independência ao declarar a inconstitucionalidade do Lodo Alfano, a lei inventada por Silvio Berlusconi e aprovada por sua maioria parlamentar para pô-lo a salvo das atribulações judiciárias que o perseguem. Eis outro fato destinado a desmontar mais uma das lucubrações da esquerda brasileira. Esquerda? Nada a ver com Enrico Berlinguer.

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