PREGUIÇA DE SOFRER

PREGUIÇA DE SOFRER
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> Rio, 20.07.2006
> Zuenir Ventura
> Colunista do "O Globo"
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> Há 26 anos, elas cumprem uma alegre rotina: às sextas-feiras pela
> manhã sobem a serra e descem aos domingos à tarde, quando não
> permanecem a semana toda lá, em sua casa de Itaipava, distante hora e
> meia do Rio. São quatro irmãs de sobrenome Sette - Mily, a mais velha,
> de 86 anos; Guilhermina (84), Maria Elisa (76) e Maria Helena (73) -
> mais a cunhada Ítala (87), a prima Icléa (90) e a amiga de mais de
> meio século, Jacy (78). O astral e a energia da "Casa da sete
> velhinhas" são únicos.
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> Elas cuidam das plantas, visitam exposições, assistem a shows, lêem,
> jogam baralho, conversam, discutem política, vêem televisão, fazem
> tricô, crochê e sobretudo riem. Só não falam e não deixam falar de
> doença e infelicidade. Baixaria, nem pensar. Quando preciso tomar uma
> injeção de ânimo e rejuvenescimento, subo até lá, como fiz no último
> sábado. Já viajamos juntos algumas vezes, como a Tiradentes, por cujas
> redondezas andamos de jipe, o que naquelas estradas de terra é quase
> como andar a cavalo. Tudo numa boa. Elas têm uma sede adolescente de
> novidade e conhecimento.
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> Modéstia à parte, são conhecidas como "As meninas do Zuenir". Me dão a
> maior força. Quando sabem que estou fazendo alguma palestra no Rio,
> tenho a garantia de que a sala não vai ficar vazia. São meu público
> cativo e ocupam em geral a primeira fila. Numa dessas ocasiões, com a
> casa cheia, elas chegaram atrasadas e fizeram rir ao se anunciarem a
> sério na entrada: "Nós somos as meninas do Zuenir".
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> Nos conhecemos nos anos 70, quando morávamos no mesmo prédio no Rio e
> Maria Elisa, que é química, passou a dar aulas particulares de
> matemática para meus filhos, ainda pequenos, de graça, pelo prazer de
> ensinar. Depois nos mudamos, continuamos amigos e nossa referência
> passou a ser a casa de Itaipava, onde minha mulher e eu temos um
> cantinho, um pequeno apartamento na parte externa da casa, os "Alpes
> suíços". No começo o terreno não passava de um barranco de terra
> vermelha. Hoje é um jardim suspenso, com árvores e flores variadas que
> constituem uma atração para os pássaros. Dessa vez, não cheguei a
> tempo de ver a cerejeira florida, mas em compensação assisti a uma
> exibição especial de um casal de papagaios.
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> O interior da casa é um brinco, não fossem elas meio artistas, meio
> artesãs, todas muito prendadas, como se dizia antigamente. Helena e
> Jacy, por exemplo, tecem mantas e colchas de tricô e crochê que á
> mereceram exposições. Mily desafia a idade preferindo as novas
> tecnologias e a modernidade, sem falar no vôlei, de que é torcedora
> apaixonada. Sabe tudo de computador e, com Jacy, freqüenta todos os
> cursos que pode: de francês a ética, de inglês a filosofia.
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> Na parede, Tom Jobim observa tudo. A foto é autografada para Elisa, de
> quem ele foi colega no Andrews. Aliás, nesse colégio da Zona Sul do
> Rio, Guilhermina trabalhou 53 anos, como secretária e professora de
> Latim, que ela ensinava pelo método direto, ou seja, falando com os
> alunos. Ficou muito feliz quando na praia ouviu, vindo de dentro do
> mar, o grito de alguém no meio das ondas, provavelmente um surfista:
> "Ave, magister!".
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> Amiga de personagens como o maestro Villa-Lobos, ela ajudou ou
> acompanhou a carreira de dezenas de jovens que passaram por aquele
> tradicional colégio, cujo diretor uma vez lhe fez um rasgado elogio
> público, ressaltando o quanto ela era indispensável ao educandário. No
> dia seguinte, ela pediu as contas, com essa sábia alegação: "Eu quero
> sair enquanto estou no auge, não quando não souberem mais o que fazer
> comigo". Foi para casa e teve um choque, achando que não ia suportar a
> aposentadoria. Durou pouco, porque logo arranjou o que fazer. É
> tradutora e gosta muito de etimologia: adora estudar a vida das
> palavras desde suas origens, principalmente quando são gregas. Ah, nas
> horas vagas faz bijuterias.
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> Para explicar como se desvencilhou do vazio de deixar um emprego de 53
> anos e começar nova vida já velha, Guilhermina usou uma frase que se
> aplica a todas as outras seis velhinhas e que eu gostaria de adotar
> também: "Tenho preguiça de sofrer".
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> Não são o máximo as meninas do Zuenir?"

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