Carta Capital

O discurso e a prática
18/09/2009 14:03:33

Luiz Gonzaga Belluzzo
O discurso do presidente Obama sobre a nova regulamentação financeira foi recebido entre sorrisos de Mona Lisa e carantonhas aborrecidas: na plateia figuravam ilustres personagens de Wall Street. Os figurões da finança pareciam apreensivos diante das ameaças de redução no valor dos bônus que ainda esperam receber como reconhecimento por seu estrondoso sucesso pessoal e rotundo fracasso institucional.

Muita gente desconfia, no entanto, que o presidente dos Estados Unidos vá sucumbir diante das resistências e humores dos senhores da finança. É cada vez maior o contingente de analistas céticos em relação à disposição de Obama de impor aos mercados regras prudenciais e medidas capazes de reverter o impulso de buscar inovações capazes de satisfazer o apetite feroz por ganhos maiores.

Nos anos 90, os democratas de Clinton patrocinaram a extinção das regras que determinavam a separação das funções entre os bancos comerciais, de investimento e instituições encarregadas do crédito hipotecário, imposta pelo Glass-Steagall Act na crise bancária dos anos 30. A rápida ampliação dos mercados de capitais, ao promover a securitização dos créditos, não só abriu espaço para as trampolinagens do subprime, como também estimulou as operações de tesouraria por parte dos bancos ou quase-bancos.

Esses novos personagens do mundo financeiro, sob os auspícios de estruturas alavancadas, passaram a carregar securities emitidas por outras instituições financeiras. Como informa o relatório do especialista inglês Adair Turner, tais práticas determinaram um crescimento desproporcional das dívidas “no interior” do sistema financeiro entre bancos comerciais, bancos de investimento e hedge funds. A crescente interdependência entre os balanços das instituições, o leitor há de perceber, foi a receita perfeita para a tragédia sistêmica.

O ímpeto da concorrência levou o sistema bancário internacional à incessante violação de todas as normas e à velha e fatal combinação entre euforia, má avaliação dos créditos, concentração setorial de ativos e superalavancagem. Para juntar infâmia à injúria, num momento em que se estreitavam os spreads entre as taxas de papéis “sem risco” do governo e os rendimentos dos títulos mais arriscados, a “securitização” evoluiu para a criação de produtos sintéticos, ou seja, para a emissão de securities derivadas de blocos de securities.

O economista inglês William Buiter, ex-membro do Comitê de Política Monetária do Banco da Inglaterra, começa por suspeitar do compromisso com as reformas por parte dos encarregados da tarefa. Figuras como o chefe da Assessoria Econômica do presidente, Lawrence Summers, e o secretário do Tesouro, Timothy Geithner não só estavam entre aqueles “que fracassaram em reconhecer as distorções que levaram à crise, como na verdade, foram responsáveis pela criação de muitas dessas distorções”.

O rol de equívocos promíscuos cometidos por Geithner e Summers em sua função de autoridades reguladoras é impressionante. Entre tantas proezas figura com aplomb afirmação de Geithner em 15 de março de 2007: “As inovações financeiras, como os derivativos, melhoraram a capacidade de avaliar e administrar os riscos”. Para Geithner, “as maiores instituições estavam em geral mais fortes no que diz respeito aos requerimentos de capital em relação ao risco”. O palpite infeliz foi pronunciado em 2007, quando a crise financeira já mostrava os dentes e afiava as garras. Dois dias depois, entrevistas e gravações mostram que Geithner trabalhou nos bastidores para reduzir o capital dos bancos.

A crise veio brava e os amigos de Geithner e Summers foram pegos no contrapé, superalavancados, com capital e reservas insuficientes para contrabalançar as perdas. Um tanto tardiamente os sábios concluíram que estavam diante de uma “crise sistêmica”.

Não é fácil definir com precisão o que é uma crise sistêmica, mas é possível reconhecer o fenômeno quando está ocorrendo. Numa pesquisa exaustiva, os economistas De Bandt e Hartmann afirmam que uma crise sistêmica ocorre quando “um número considerável de instituições financeiras ou mercados afeta o bom funcionamento do sistema de crédito, ou seja, afeta negativamente a eficiência da transformação da poupança em investimento produtivo”. Os dois economistas estão falando de uma contração do crédito, um credit crunch, que se esparramou por toda a economia e disparou uma crise no setor dito “real”, sobretudo no consumo das famílias, no investimento produtivo e no emprego. Sem tirar nem pôr, foi isso o que ocorreu sob as barbas dos economistas de Obama, senão sob seu patrocínio entusiasmado.


Luiz Gonzaga Belluzzo

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